Carregado de uma certa insônia bissexta, acabei vendo mais TV
do que o nível recomendável pela Organização Mundial de Saúde nas
últimas semanas. Da próxima vez, vou andar de bicicleta de madrugada (as
ruas de São Paulo são mais seguras para ciclistas do que a programação
da TV para os insones). Enquanto o cérebro se recupera, relato que tive a
oportunidade de ver e rever alguns comerciais sensacionalmente
perturbadores.
Não tenho mais carro há um bom tempo. Então me senti uma titica
amorfa e pedestre quando percebi, através de uns anúncios lindos de
morrer, que se eu não tiver um possante ultrajantemente rápido, não
conseguirei correr o suficiente para fugir da lembrança de um dia ruim
de trabalho. E como dias ruins de trabalho são constantes, estou fadado à
danação eterna das sardinhas enlatadas do busão.
Como alguém vai poder compensar uma vida infeliz, um casamento de
fachada e um emprego que só traz gastrite se não tiver um carro rápido?
Pois, ao adquiri-lo estou comprando um estilo de vida, um estilo sem
preocupações. Só velocidade. Ah, e sustentável, é claro, porque a
empresa mostra no comercial que planta meia dúzia de margaridas para
compensar toneladas de emissão de carbono emitidas, protege uma família
de esquilos-anões-do-moicano-peludo e doa 10 estojos de giz de cera para
uma comunidade onde são jogados os efluentes tóxicos de sua fábrica a
cada carro comprado – mas sem o giz branco, que é mais caro. Ou seja,
prova-se veloz em não resolver todo o impacto causado pela produção em
série dessa fuga sobre rodas.
Já comentei aqui antes que a busca pela felicidade passa cada vez
mais pelo ato de comprar. E a satisfação está disponível nas gôndolas,
prateleiras e concessionárias a uma passada de cartão de distância.
Muitos de nós ficam tanto tempo trabalhando que tornam-se compradores
compulsivos, adquirindo estilos de vida em forma de símbolos daquilo que
não conseguirão obter por vivência direta. Através desses objetos,
enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco.
Porque, como os produtos que a representam, possui sua obsolescência
programada para dar dinheiro a alguém.
Criticar esse mundo de fantasia é visto como censura por aqui. Onde já se viu colocar caraminhola na cabeça de meus clientes?
Sei que publicidade mexe exatamente com essa fantasia e os sonhos,
próprios ou induzidos de cada um. Mas há limites do bom senso que certas
indústrias extrapolaram há tempos.
Se as empresas querem ter o direito de se expressarem livremente ao
anunciar um produto da mesma forma que os jornalistas têm ao noticiar
algo, creio que podemos exigir delas que forneçam os “dois lados” da
história e não transmitam apenas uma parte, aquela que lhes interessa.
Certamente, com os anunciantes falando a verdade sobre o que oferecem a
nós, teremos um país mais consciente na hora de comprar e, portanto, um
desenvolvimento mais sustentável.
E como já disse aqui antes, caso a empresa se negue a prestar
informações sobre a situação real, esses dados poderiam ser fornecidos
pelo próprio governo e divulgados à sociedade através desse espaço
publicitário. Afinal, de acordo com o Código de Defesa do Consumir,
temos esse direito. Ter informação é fundamental para poder ter
liberdade de escolha. E comprar é um ato político, pois ao adquirir um
produto você dá seu voto para a forma através da qual uma mercadoria foi
fabricada e mesmo o que ela representa. É justo saber o que está se
comprando e quem, através disso, estamos nos tornando.
Ou as empresas têm medo de transparência?
PS: Ter um carro é legal. Gosto de carros. Mas chegar mais cedo em
casa por morar em uma cidade que beneficia o transporte coletivo ao
individual também é legal. Respirar um ar menos poluído é legal. Andar
sem o risco de ser atropelado é legal…
Nenhum comentário:
Postar um comentário